sexta-feira, outubro 17, 2008

Peta IV: Da Carreira

Peta IV: Da Carreira

Torres iniciou a sua carreira como futebolista, representando o Grupo Desportivo São Roque.
Ainda era criança, quando começou a frequentar as escolas do clube, inscrito pelos seus pais. Pequeno, mas responsável, fazia questão de comparecer regularmente aos treinos.
Desde bem cedo, revelou apetência e talento para o jogo, tal era a habilidade com que tratava a bola, invulgar num jogador de palmo e meio.
Assim que atingiu a idade apropriada, transitou para o escalão de formação infantil.
Contudo, após observações por parte de alguns responsáveis dos corpos técnicos que se distribuíam pelas diversas camadas do clube, com o consentimento da direcção, Torres foi promovido à classe de iniciados.
Tratava-se de uma situação incomum, dado que, dentro da modalidade, era pouco usual um praticante de tão tenra idade ver a sua ascensão a um grau superior acontecer com semelhante precocidade.
Todavia, justificou-se a aposta, já que, ao contrário do que imaginariam os mais cépticos, não demorou para que o promissor talento se afirmasse na equipa de iniciados, garantindo, de imediato, lugar cativo no onze inicial da formação.
Se, finda a primeira época, as actuações realizadas nas competições correspondentes ao nível deixaram alguma dúvida quanto ao seu potencial futebolístico, a temporada seguinte apenas viria a confirmar a singularidade dos seus atributos.
Senhor de uma técnica refinada, pronto na hora do remate, exímio no disparo cruzado, seguríssimo no jogo aéreo e dotado de um excelente sentido de desmarcação, enfim, um avançado de luxo – assim se definia Torres como jogador.
Não foi difícil, por isso, conquistar a simpatia da massa associativa. A admiração que os adeptos tinham por si era manifesta na crescente afluência aos encontros, cujos momentos mais empolgantes nas bancadas aconteciam quando o esférico chegava aos pés do jovem craque.
Os responsáveis do clube tinham razões para sorrir, pois o seu achado, além de ser desportivamente rentável, tratava-se de um chamariz de público e, consecutivamente, de uma fonte de lucro virtual, pelas excelentes receitas de bilheteira que poderia proporcionar no futuro.
Infelizmente, Torres permitiu que a fama lhe subisse à cabeça.
Durante as sessões de trabalho da equipa, tornaram-se constantes os conflitos com o treinador, que, não raro, perante recusas de efectuar os exercícios pedidos, fazia o seu jogador correr o perímetro do relvado ou escalar as bancadas em ambos os sentidos, ao longo de horas a fio, sem direito a descanso.
Tais castigos, porém, não surtiram o efeito pretendido, já que as provocações do pupilo ao seu mister se sucediam.
Invocando motivos disciplinares, o técnico chegou inclusivamente a relegá-lo para a condição de substituto. Lançava Torres na partida apenas nos minutos finais, mas, mesmo assim, o prodígio assinava invariavelmente um hat-trick, jogo após jogo, apontando sempre os três golos através de pontapés de bicicleta.
As suas exibições magistrais eram autênticas bofetadas de luva branca no treinador, que, passadas algumas jornadas, foi obrigado a dar o braço a torcer e devolveu-lhe a titularidade.
No entanto, não houve qualquer mudança na atitude presunçosa de Torres. Soberbamente, recusava-se a pôr em prática as instruções do seu superior, no decorrer dos encontros, o que resultava, muitas vezes, em desconfigurações na formação táctica da equipa.
Não tardaria para que a chicotada psicológica acontecesse, no rescaldo de uma partida deveras insólita.
O Grupo Desportivo São Roque jogava em casa. Casualmente, à hora do pontapé de saída, numa metade do campo chovia torrencialmente, ao mesmo tempo que a luz do sol incidia, fulgurante, na outra, sem que qualquer borrifo a atingisse. A linha divisória do terreno era paralela à fronteira que, uns quantos metros acima, separava as nuvens cinzentas das brancas.
Seria suposto que Torres se posicionasse no eixo do ataque, ao longo dos noventa minutos, mas, tendo em conta que haveria troca de campo ao intervalo, o avançado optou inteligentemente por deter-se na retaguarda, durante o primeiro tempo, desempenhando as funções de um defesa central, para ser o homem mais adiantado na etapa complementar. Assim, permaneceu na zona ensolarada, seca, do relvado por todo o encontro, evitando o lamaçal em que o meio-campo contrário havia sido transformado, fustigado pelos aguaceiros incessantes.
Depois do apito final, inquirido a respeito do desacato das ordens dadas a partir do banco de suplentes para dentro de campo, Torres agrediu insurrectamente o técnico nos balneários, revoltado por este não ter aceite uma constipação como justificativa para ter violado a estratégia, de modo a não se molhar com a chuva que caía em metade do terreno de jogo, o que agravaria o seu estado.
Tal incidente resultou no despedimento do treinador, após o jovem goleador, gozando o seu estatuto de estrela da companhia, ter feito um ultimato à direcção, em que reivindicava a exclusão do encarregado do grupo de trabalho, sublinhando que uma renúncia a tal imposição comprometeria a sua continuidade no clube.
Todavia, nem a mudança no comando técnico pôs cobro à conduta desajustada de Torres.
Embora já se evidenciasse mais disposto a cumprir ordens superiores, tanto durante os preparos para os jogos como no decorrer dos mesmos, rabujava tenazmente nas vésperas das jornadas que envolviam deslocações a terrenos adversários, queixando-se do aborrecimento que as viagens no autocarro da equipa lhe provocavam. O tom descontente que aplicava nas suas manifestações variava consoante a distância que estivesse envolvida.
Saturado com a situação, como os desafios em que o clube participava se jogavam alternadamente em casa e fora, Torres, nos instantes finais das partidas que o Grupo Desportivo São Roque disputava no seu reduto, cometia propositadamente algum delito dentro das quatro linhas, que lhe valesse a expulsão do encontro e consequente suspensão na ronda seguinte, que seria realizada em campo alheio.
Deste modo, apenas estava disponível para ser chamado pelo treinador nos embates caseiros, dado que se encontrava sempre castigado quando a equipa enfrentava algum oponente, na condição de visitante.
Usualmente, Torres provocava a amostragem do cartão vermelho através de entradas duras sobre um adversário desafortunado, que escolhia aleatoriamente. Porém, ocasionalmente, surgiam árbitros com uma forma de apitar permissiva, tolerando faltas grosseiras sucessivas, sem que as suas reprimendas fossem além de palavras. Nessas circunstâncias, o jovem futebolista via-se na obrigação de insultar ou, em casos mais extremos, até mesmo agredir fisicamente o juiz.
Estava disposto a qualquer coisa para não ter de acompanhar os colegas, nos jogos fora de casa.
Entretanto, apesar dos aspectos negativos que marcavam Torres enquanto desportista, a presença de olheiros no dia-a-dia da equipa, sobretudo aos fins-de-semana, quando havia jogo, era constante.
Não tardou para que começassem a chover propostas dos mais diversos clubes para a contratação do portento. Boavista FC e FC Porto eram os nomes mais sonantes, dentre os emblemas interessados.
Torres compareceu, inclusivamente, a uma sessão de testes para aprovação no grupo de trabalho dos juvenis dos azuis e brancos. Sem sucumbir à pressão de todos aqueles olhos que o avaliavam, o jovem superou com distinção as provas a que foi submetido, primeiro, conseguindo habilmente manter a bola no ar com várias centenas de toques consecutivos, e, depois, durante uma peladinha, efectuando uma exibição onírica. Na retina dos responsáveis dos dragões, cujo espanto era indisfarçável, ficou uma jogada protagonizada por si, em que driblou, um a um, todos os elementos do quarteto defensivo adversário, fazendo o esférico passar-lhes entre as pernas, acção que precedeu uma finalização bem sucedida, como não podia deixar de ser, com um pontapé de bicicleta indefensável.
Obviamente, Torres foi aceite na equipa, mas, porque a cidade do Porto era ainda um pouco afastada da localidade em que residia, coagido pelos pais, acabou por rejeitar o convite.
Descartada tal possibilidade, o auspicioso avançado analisou as demais propostas que tinha em cima da mesa, a maioria oriunda de clubes de projecção meramente regional, nenhum deles ideal para dar um salto na sua carreira.
Contudo, havia uma opção que o seduzia particularmente, dado que envolvia uma remuneração de €1500,00 mensais, um valor deveras considerável. Ora, perspectivava-se um contrato inédito, na medida em que o assalariamento de atletas, no futebol juvenil, não era costumeiro.
Os honorários aliciantes e a garantia de excelentes condições para a formação de jogadores, levaram Torres a selar um acordo com a União Desportiva Oliveirense, sedeada no município de Oliveira de Azeméis.
Não foi nada pacífica a sua saída do Grupo Desportivo São Roque, que, tomando conhecimento do facto de que iria auferir um ordenado no seu novo clube, como se de um profissional se tratasse, acusou o mesmo de promover o trabalho infantil. Os dirigentes chegaram ao ponto de procurarem dissuadir os pais do rapaz de autorizarem a sua mudança, ocorrência que esteve na génese de uma séria contenda, envolvendo representantes de ambos os lados e o próprio jogador. Por fim, tudo acabou por resolver-se e a transferência consumou-se.
Era o início de uma nova etapa na vida desportiva de Torres.
Começou com um enorme desgosto, dado que, chegado às instalações da instituição que passaria agora a servir, apercebeu-se de que fora logrado. Afinal, o seu nome havia sido inscrito nos quadros da equipa B de juvenis e não na principal do escalão, ao contrário do que esperava. Desconcertante.
A impressão com que ficou do clube, após o seu primeiro treino, não foi a melhor. Apesar de ter simpatizado com o plantel como um todo, decepcionou-se com o estado degradado das infra-estruturas em si.
O campo pelado, em que se realizavam os jogos da equipa e respectiva preparação, tinha uma superfície bastante acidentada. Havia imensos buracos espalhados, que, além de dificultarem a prática do futebol, punham em risco a integridade física de quem tropeçasse neles. Esse era, a par da virilidade com que os oliveirenses se entregavam ao jogo, um dos motivos pelos quais a presença de uma ambulância nas imediações das quatro linhas era ali regra. Dificilmente, uma partida chegava ao fim, sem que os bombeiros transportassem para o hospital da cidade, no mínimo, um lesionado gemendo lastimavelmente.
As delimitações do terreno eram imperceptíveis, pois as linhas estavam quase totalmente apagadas
Os balneários possuíam apenas um chuveiro operacional, que não convidava a um duche. Estremecia convulsivamente, ao passo que tossia água barrenta.
Com o passar do tempo, Torres viria a verificar que as condições de trabalho, no que dizia respeito ao vestuário e apetrechos necessários, também deixavam muito a desejar.
As balizas não tinham redes, apenas a armação. A quantidade de bolas disponíveis era precária e a sua consistência, fraca.
O número de uniformes coincidia com o número de jogadores, à certa. No fim das sessões de treino, cada um era responsável por depositar o seu num tanque à saída do complexo desportivo, onde seriam lavados manualmente, de modo a estarem prontos para nova utilização no dia seguinte. Nas estações frias, nem sempre se completava a secagem, pelo que os atletas não tinham remédio senão vestirem os equipamentos húmidos. Estavam completamente desbotados, devido às incontáveis lavagens a que já haviam sido submetidos.
Era realmente caricato o dia-a-dia na União Desportiva Oliveirense.
Todavia, apesar de os seus fundos serem insuficientes até para pagar as contas da água e da luz, em ocasião alguma se verificou um atraso na liquidação do ostentoso salário de Torres.
Como a situação financeira do clube era de iminente falência, o presidente chegou, inclusivamente, a vender uma viatura particular, no intuito de se assegurar de que não faltava capital para manter o avançado na equipa.
Em termos desportivos, o conjunto não atravessava um bom momento de forma. Ocupava uma posição modesta na tabela classificativa. Na verdade, o plantel apresentava algumas fragilidades, que os resultados não disfarçavam.
Havia apenas dois elementos que habitualmente, durante os jogos, sobressaíam entre os demais: em primeiro lugar, Torres, cujos golos acabavam sempre por marcar a diferença, e, ulteriormente, um guarda-redes, que, quando estava entre os postes, fazia crer que a sua baliza estava abençoada.
Não dava para contar os pontos que as suas luvas já haviam agarrado para a formação oliveirense. Felino, era um guardião extraordinariamente difícil de bater. Jamais se conformava, ao ver as suas redes balançadas por uma bola disparada por um adversário. Era apaixonante observá-lo em campo, pela raça com que jogava.
Notabilizou-se particularmente por ser um especialista em defender penaltys com o peito. Por mais colocados que fossem os pontapés dos marcadores das grandes penalidades, raramente conseguiam convertê-las, se o salvador estivesse na baliza. Mesmo quando o esférico era puxado a um dos ângulos superiores, o jovem guarda-redes conseguia adivinhar o lado e lançar-se atempadamente, em voos espectaculares, na direcção da bola que matava no seu peito. Proporcionava momentos fotográficos puramente sublimes.
Tinha uma constituição física invulgar para um futebolista da sua posição, medindo cerca de um metro e oitenta e pesando cento e trinta quilos, valores que, de facto, eram bastante desproporcionais.
Comia como um animal esfaimado. Durante certa refeição, Torres testemunhou, incrédulo, a sua ingestão sucessiva de dez frangos de churrasco inteiros! Em virtude do tipo de alimentação que levava, era natural que tivesse excesso de peso.
Haviam passado poucos meses desde que chegara ao clube, mas o avançado já ponderava em dar novo rumo à sua carreira.
Era infeliz na União Desportiva Oliveirense. Só o dinheiro o prendia ali, dado que não tinha qualquer orgulho ou vaidade em envergar o seu símbolo, nem sentia amor por aquela camisola.
Em breve, acabaria por rescindir contrato, para tristeza dos dirigentes oliveirenses.
Regressou ao Grupo Desportivo São Roque, onde foi recebido de braços abertos, como um filho pródigo. Adeptos, colegas e responsáveis rejubilaram com o retorno do goleador, que tantas saudades havia deixado.
Seria ao serviço do clube que Torres relançaria a sua carreira.

Peta III: Dos Javalis

Peta III: Dos Javalis

O ocaso tingia já o céu de um tom afogueado.
Havia sido uma péssima tarde de caça para Torres. Durante horas, vagueara pela floresta, sem encontrar uma única presa digna de mira.
Ainda tentara frustradamente abater alguns pardais incautos, que ia avistando pousados nos ramos dos pinheiros, porém, sem qualquer outro intento senão o de extravasar o seu inconformismo em relação à jornada fracassada.
Na verdade, os alvos preferenciais de Torres eram as feras que habitavam a zona, precisamente por isso, afamada pelo perigo que representava aos que por ali se aventuravam.
Entardecia. Passos obstinados mantinham-no em marcha, esperançoso de que ainda pudesse caçar algum animal ou, pelo menos, ensaiar a pontaria. Afectado pela fadiga que lhe pesava nos membros, transportava a arma ainda estéril, em que pendurava os braços, apoiada na nuca e nos ombros, como se de um jugo se tratasse.
Enfim, resignado com a sua falta de sorte, deliberou efectuar uma pequena pausa para descanso, antes de se fazer ao caminho de regresso para casa.
Deixou a caçadeira encostada ao tronco de um pinheiro e, sentando-se no chão, roçou as costas no sopé de outro, alguns metros afastado do primeiro, procurando a posição mais confortável para repousar durante alguns minutos.
Cochilo atrás de cochilo, acabou por adormecer.
O sono não foi longo, já que, assim que abriu os olhos, foi ofuscado pela luz do sol que raiava filtrada pelas frondes das árvores em redor, sinal de que a noite ainda não havia caído.
Esfregou a vista com as mãos, pestanejando intermitentemente, num exercício de habituação à claridade.
Já se punha em pé, quando, repentinamente, numa expressão de pasmo, voltou a deixar-se cair no solo. Manifestamente atarantado, arrastou o corpo para trás, usando os cotovelos para se locomover, até que a posição do tronco não lhe permitiu recuar mais. Levantou-se devagar. Quedo de medo, apenas percorria um olhar esbugalhado pelo seu redor imediato.
Três javalis de pelagem cinzenta e espessa, machos cuja corpulência impressionante inspirava receio, cercavam-no. Roncavam ameaçadoramente, inquietos, realizando movimentos bruscos com as patas dianteiras. Com uma expressão selvagem, viva, observavam o rapaz, através da poeira que pairava no ar. Aguçavam as orelhas pequenas e pontiagudas, farejando incessantemente na sua direcção.
Aflito, Torres cogitava uma maneira de se escapar, antes que os bichos o atacassem, mas a retirada não se afigurava como uma tarefa simples.
Ao menos, se tivesse a arma por perto, poderia enfrentá-los, mas tinha-a deixado junto a uma árvore, para a qual a passagem estava bloqueada naquele momento. Delicadamente, para não enfurecer os javalis, remexeu os bolsos à procura da sua faca, mas, por descuido, nesse dia, não a trouxera.
Refira-se que Torres era um caçador desleixado. Exceptuando as ocasiões em que era acompanhado e vigiado pelo pai nas caçadas, nunca se apetrechava com os utensílios indispensáveis. Limitava-se a trazer a caçadeira e nada mais. Agora, em apuros, arrependia-se amargamente por ter ignorado as normas de segurança, que tanto se recomendavam.
Estava visto que, não se podendo defender, Torres tinha de fugir. Mas como?
Os javalis, além de se encontrarem muito próximos de si, haviam-se disposto à sua volta de uma forma que impossibilitava a saída. Além disso, o tronco denso do pinheiro que tinha à retaguarda deixava-lhe ainda menos espaço aberto.
Torres pensou em desatar a correr, mas deteve-se, quando reparou melhor nas presas robustas que se projectavam, em par, para fora da boca dos animais, a partir dos seus maxilares. O risco de ser tolhido era demasiado grande. Era preciso arranjar outra solução.
Olhou para cima, considerando a altura e a consistência dos ramos do pinheiro a que tinha as costas coladas, mas subi-lo estava fora de questão, já que não era um trepador dos mais ágeis.
Entretanto, um dos javalis chegou mais perto, fazendo o jovem sentir o fedor intensificar-se. Os seus roncos soavam a rugidos, bravo que estava o animal!
Torres estremeceu. Conhecia bem o padrão comportamental da espécie, pois já havia lidado com inúmeros exemplares, na condição de presas, e logo identificou aquela acção como precedente de um ataque iminente.
Apercebeu-se, por isso, de que uma tomada de medidas era urgente.
Os outros dois suídeos caminharam na sua direcção, imitando o anterior, também eles cuinchando agressivamente. O trio de bestas agitava os focinhos, exibindo os caninos em riste, ao passo que apertava o cerco.
O caçador estava prestes a ser caçado!
Torres, desesperado, antes que pudesse ser vitimado por qualquer investida, começou a distribuir pontapés indiscriminadamente, alternando o javali que atingia. À violência dolorosa das pancadas, os animais reagiam com grunhidos lamuriantes.
Com a fúria dobrada, acometiam raivosamente contra o rapaz, mas sem êxito, dado que eram repelidos pela dureza dos golpes das suas botas, que se mostravam um eficaz recurso de defesa.
Após sucessivos chutos, fatalmente feridos, os javalis foram tombando, um a um, quase em simultâneo, perecendo literalmente aos pés de Torres.
Este deitou-se no chão, ofegante, tentando recuperar a calma, de modo a abrandar o ritmo das explosões cardíacas que lhe abalavam o peito.
Recobradas as energias, finalmente, dirigiu-se para casa. Como troféu, escolheu o animal maior, que transportava agarrado pelas patas, em volta do pescoço, sustendo-o sobre o lombo.
Para trás, perdidos na escuridão crescente, ficavam os espólios da caçada, jazidos ao relento sobre o tapete de agulhas e pinhas que forravam a mata.

domingo, novembro 19, 2006

Serenata Virtual

Esta é para ti, Torres.

segunda-feira, setembro 18, 2006

Peta II: Do 11 de Setembro

Está publicado um novo excerto de Rega as flores que elas crescem.
Peta II: Do 11 de Setembro
O Sol voltou a dar à luz, naquela manhã veranil. Renasceu a América, marcavam os calendários o dia 11 de Setembro de 2001.
Torres, juntamente com noventa e um entes, deslumbrara-se com a alvorada, cruzando os céus a bordo do voo 11 da American Airlines, com rota definida para Los Angeles. Partira de Boston, Massachussets, onde havia passado algum tempo, ocupando-se com actividades de âmbito turístico. Agora, essas recordava saudoso, com a cabeça apoiada na pequena janela, vislumbrando a paisagem longínqua que se estendia sob o chão virtual que pisava.
Ultrapassadas as 08:40, a aeronave vinha já baixando de altitude, próxima que estava a sua chegada ao destino...
Estranhamente, foi nesta fase do trajecto que elementos da tripulação se deslocaram à área de passageiros para distribuir refeições, começando pelos viajantes em primeira classe, grupo que englobava Torres.
Chegada a vez de ser prestado serviço à sua fila, o jovem recebeu simpaticamente o seu tabuleiro, seguindo-se certo indivíduo de fisionomia arábica, que tomava o assento a seu lado, cujas origens eram confirmadas pelos trajes que envergava. Era um homem de certa pujança. As barbas longas mascaravam-lhe a idade. Conservara-se sempre calado, desde a descolagem do aparelho, impávido, compenetradamente absorto nos seus pensamentos.
Aquele ambiente mudo maçava o adolescente português. Bem lhe podia dar a oportunidade de narrar as suas inúmeras e incríveis peripécias, mas não o fez. Por sua vez, Torres nunca teve motivação para romper aquela barreira de silêncio, que o separava do seu invulgar companheiro.
Também não seria agora, que se deliciava com o pequeno-almoço, que o iria fazer. Comia satisfeito, enquanto mirava com um olhar faminto o que lhe faria o gosto ao paladar, de seguida.
Foi nisto que, subitamente, o tal sujeito que se encontrava à sua direita, avançou para o centro do corredor, segurando um estranho mecanismo – era uma bomba nuclear! Em volume bem audível, bradou, no seu idioma: “Estejam todos quietos ou isto vai tudo pelos ares!”.
Conhecedor que era de diversas línguas, Torres compreendeu, de pronto, a mensagem transmitida, ao contrário dos demais passageiros.
De qualquer forma, não foi necessária tradução para que um terror gélido invadisse o compartimento. Petrificadas, as pessoas não ousaram esboçar um único gesto ou pronunciar qualquer palavra. O medo travava-as.
O ameaçador percorria as suas faces com um olhar sinistro, evidenciando-se determinado a agir perante alguma provocação.
Apenas Torres, nas suas costas, estava fora da área de supervisão. Se havia alguém que pudesse fazer algo, era ele. Sem dúvida, a sua posição era privilegiada para isso. Apercebendo-se desse facto, o rapaz sentiu urgir a hora de se tornar um herói.
Apoderado de uma coragem incomum, sorrateiramente, apertando com força o tabuleiro de plástico entre os dedos, levantou-se, sem fazer ruído. Deu um passo em direcção ao árabe e, após erguer a arma improvisada nas alturas, desferiu uma pancada hercúlea que atingiu o topo da sua cabeça.
A bomba nuclear rolou das mãos da vítima, cujo cadáver tombou redondo no chão.
Torres manteve-se imóvel durante breves segundos, olhando, antes de respirar de profundo alívio.
Toda a comitiva aplaudiu, de pé, aquele acto de bravura. Os que estavam mais perto felicitavam o seu salvador, por lhe darem palmadas amigáveis nas costas ou apertarem as suas mãos, com um sorriso devoto.
Dois tiros ecoaram no avião.
As pessoas gritaram em sinal de agonia, procurando refúgio à prova de bala. O barulho era proveniente da parte dianteira do veículo, para onde Torres avançou com passadas largas, entre as margens humanas aterrorizadas.
Ao invadir o cockpit, deparou-se com certo homem, também de clara origem semita, semelhante ao anterior, que se injectava com uma substância não identificada.
Atrás de si, jaziam os corpos inanimados dos dois pilotos, uma bala crivada em cada testa. O homicida largava agora o revólver e a seringa, contorcendo-se desesperadamente no chão, como se algo o consumisse por dentro. Não tardaria para que o efeito do veneno lhe pusesse definitivamente termo à vida.
Ao observar toda a cena, Torres chegou a ter a sensação de que estava a viver um filme.
E, como se não bastasse, ao olhar pelo vidro frontal da cabine, avistou uma gigantesca torre hirta, a uma escassa distância. O avião estava prestes a colidir, o desastre era iminente!
Uma sensação frustrante de impotência perante a situação prendeu-o ao solo. Boquiaberto, era incapaz de reagir, tal era o seu pasmo. Mas tinha de fazer algo, imperativamente. Torres não podia ter um fim tão desventurado.
Reunindo toda a sua concentração, desatou a remexer em tudo o que havia em seu redor.
Ainda tentou alterar a direcção da aeronave, mas fê-lo em vão. Apesar de estar bastante rotinado em conduzir helicópteros, não viu forma de estabelecer uma analogia entre tal modalidade de pilotagem e o conglomerado de comandos que compunham o painel de controlo à sua frente.
Era o seu coração que o comandava. Instintivamente, dirigiu-se a um armário ao fundo do cockpit, escancarou as duas portas, e achou diversas mochilas que continham pára-quedas no seu interior. A esperança renasceu para aquele jovem em apuros!
Tornou a espreitar pelo visor. Uma centena de metros, talvez, separavam-no do edifício com que iria chocar dentro de instantes.
De cabeça perdida, Torres tentava de todas as formas abrir uma porta na lateral da cabine. Sem saber bem como, conseguiu fazê-lo.
Não perdeu um segundo, lançou-se para terra, deixando o avião para trás.
Escutou o estrondo ensurdecedor do embate do veículo no majestoso prédio que ali se erguia e, por pouco, não foi engolido pela poderosa bola de fogo que se alastrou no céu. Distinguiu claramente, entre as chamas, uma das torres gémeas que faziam parte do famoso World Trade Center, em Nova Iorque.
Puxou o cordão de abertura do pára-quedas, que lhe reduziu o campo de visão, e pairou descendentemente até aterrar em segurança.
Afinal, alguém sobreviveu para contar...

sábado, julho 29, 2006

Peta I: Do Diabo

Segue-se a transcrição integral do primeiro capítulo da obra Rega as flores que elas crescem.
Peta I: Do Diabo
O acaso ditou que o décimo terceiro dia daquele mês coincidiria com uma sexta-feira, tempo de tantas histórias bizarras que se têm contado.
Alheio a superstições por defeito, Torres sempre vira os gatos pretos passarem em frente à sua indiferença. Jamais talismã algum lhe havia merecido tributo por uma graça da fortuna.
Contudo, foi incapaz de levar uma vida à margem de assombros, depois de, em certa ocasião, um amigo lhe ter narrado, na primeira pessoa, um episódio deveras invulgar, uma vivência perturbadora. Havia-lhe sido dito que teria uma visão do próprio Diabo todo aquele que, à meia-noite de uma sexta-feira 13, percorresse ininterruptamente o perímetro de uma igreja por treze vezes. Tentado pelo desafio e possuído por um espírito aventureiro, atrevera-se a questionar o que julgava não passar de uma crendice. Todavia, tal peripécia acabaria por lesá-lo visceralmente, deixando-lhe a cicatriz de um terror traumático, resultante de um encontro transcendental digno do pior dos pesadelos.
Atiçado pela curiosidade, Torres aproveitou, daí a poucos dias, o ensejo com que o calendário o brindou para realizar a mesma experiência.
Pela calada da noite, montado no selim da sua bicicleta, subiu, pedalando, a colina cumeada por uma igreja escassamente iluminada pelo clarão lunar.
Tendo-se aproveitado do tronco de um sobreiro para estacionar o seu veículo, o jovem, por breves minutos, aguardou, no átrio do edifício, que se fizesse ouvir a primeira das doze badaladas prestes a retumbarem, para que pudesse enfim circular.
Tocou o sino. Torres respirou fundo, tentando dissipar o nervoso miudinho que sentia dentro de si, e deu início à caminhada, acompanhando de perto as paredes exteriores do prédio.
Só uma volta estava concluída, assim que o campanário voltou a abandonar o monte ao silêncio.
O rapaz prosseguia com firmes passadas largas, arfando, com as mãos afundadas nas algibeiras do sobretudo, gelado pela mesma brisa frígida que se entranhava nas copas das árvores em redor, fazendo as folhas farfalharem secamente.
Do povoado afastado, partiam uivos lamuriantes que se dissolviam na distância, soando a um chamamento aos espectros albergados nas sombras dos morros brumosos.
Ignorando o coro de gorjeados fantasmagóricos que emergia do negrume, Torres dava entrada na recta final do passeio, a décima terceira volta.
Por uma última vez, contemplou o vazio do pátio fronteiro à igreja, onde manteve os olhos fixos até se perder na curva.
À medida que ia cruzando os derradeiros metros da etapa, o seu coração remexia-se convulsivamente dentro do peito, indomável, sem que nada o pudesse amansar. Na sua cabeça, uma entropia de ideias. Ocorreu-lhe o pensamento de desistir daquela parvoíce, mas, se o fizesse, decerto arrepender-se-ia posteriormente, e, então, dali em diante, haveria apenas um sétimo de possibilidades de que um dia 13 voltasse a cair numa sexta-feira. Por outro lado, invadia-o o pavor do que pudesse estar ali ao virar da esquina. Talvez fosse melhor parar, enquanto ainda era tempo. O que ganhava ele em ver o Diabo, afinal? Mas também não seria agora que iria ceder ao medo. Torres era um homem e dos valentes. Havia chegado a hora de o provar a si próprio.
Enchendo-se de uma extraordinária dose de coragem, sem hesitar por um instante, o jovem, determinado, dobrou o canto que assinalava a meta e parou.
De imediato, o seu olhar percorreu a fachada da igreja, pregando-se na escadaria, onde se sentava, voltado, um vulto imóvel, encapuzado, embrulhado num manto comprido. Ligeiramente curvado, com os cotovelos pousados nos joelhos, servia-se das mãos em concha como pretenso suporte para o queixo. Parecia ter a aparência de um homem.
Torres admirava-o, mudo, petrificado. Por momentos, apeteceu-lhe desaparecer antes que a sua presença pudesse ser notada, mas o desejo de chegar mais perto e fitar aquele rosto compeliu-o a aproximar-se.
Pé ante pé, sorrateiramente, o rapaz entrou no adro, até alcançar um ponto em que a luminosidade diminuta lhe permitisse ter um outro vislumbre da estranha figura.
Foi então que reparou no escarlate berrante das suas vestes, bem como na presença de um tridente de cabo longo, jazido num dos degraus a seus pés.
Sem se deixar intimidar pela majestade da envergadura descomunal daquela personagem, Torres continuou a andar, numa marcha furtiva.
Abruptamente, algo se agitou debaixo do manto do desconhecido, sem que este reagisse. O jovem deteve-se, amedrontado, e viu surgir debaixo do rubor da sua capa o que se assemelhava a uma cauda. Esguia, revolvia-se, arrastando-se pelas caleiras das pedras sujas das escadas, que vergastava com intensidade.
Aturdido, Torres foi incapaz de conter uma exclamação, que não passou despercebida à monstruosa criatura, que se virou asperamente para o rapaz apavorado, exibindo a sua face vácua, negra. Sim, era ele, o Diabo!
Comandado pelo pânico, o jovem correu desesperadamente para a sua bicicleta. Olhou para trás e viu o maléfico ser lançar-se no seu encalço, deslocando-se a uma velocidade impressionante, com o enorme tridente erguido nas alturas. Vociferava, trovejante, palavras imperceptíveis.
Torres pedalava, horrorizado, descendo vertiginosamente a encosta. O relevo era extremamente acidentado, provocava solavancos constantes. Por detrás da vegetação densa, avistava-se já a estrada. Poucos segundos separavam-na do rapaz.
O perseguidor provavelmente havia sido despistado, dado que já não eram audíveis os seus brados.
Mais uma vez, Torres voltou-se para ver se ainda o tinha à retaguarda, mas, antes que pudesse reagir, foi inesperadamente atingido por uma violentíssima bofetada no rosto. Estonteada, a vítima caiu da bicicleta, que se desfez nos arbustos, e rebolou desnorteadamente sobre a vegetação agreste, esboçando gemidos de dor à medida que as pedras lhe infligiam golpes por todo o corpo, até chocar brutalmente com o tronco de uma árvore.
Levantou-se, em visíveis dificuldades, e coxeou até à bicicleta danificada, conduzindo-a de seguida para a estrada, tão rápido quanto pôde.
Só respirou de alívio já chegado a casa, donde mirou, como se fosse a primeira vez, aquela paisagem de uma igreja abandonada no cimo do monte, cercada de floresta, numa noite de lua cheia.

sábado, julho 22, 2006

Sinopse de Rega as flores que elas crescem

Rega as flores que elas crescem resulta de uma compilação de contos, redigidos a partir de uma série de relatos fantasiosos por parte de um jovem contador de petas compulsivo.
O projecto foi encetado por um grupo de três dos seus antigos colegas de escola, testemunhas das suas narrações na primeira pessoa, que decidiram reconfigurar as suas incríveis histórias num estilo de carácter literário, de modo a materializar a sua memória e poder partilhá-las com um público mais vasto.
A criatividade suprema e elevado grau de comicidade que patenteiam, aliados à hilariante absurdez da convicção do autor na sua veracidade, foram factores que motivaram a realização deste trabalho.
Ao longo da obra, são particularizadas as surpreendentes façanhas e desventuras de Torres*, desde a sua fuga in extremis de um dos aviões que embateu no World Trade Center, durante os atentados do dia 11 de Setembro de 2001, até uma perseguição criminal a alta velocidade, que empreendeu montado numa mota de água, em plena via rodoviária.
Os autores estão certos de que os conteúdos deste volume, preparados com todo o escrúpulo, serão apreciados pelo caro leitor.
* Nome fictício.

domingo, abril 09, 2006

Prefácio

A publicação do post presente assinala formalmente a reinauguração de Rega as flores que elas crescem.
Tal espaço, outrora albergado num domínio distinto do actual, ressurge na blogosfera, orientacionalmente transfigurado, após um período de aproximadamente dois anos e meio de inactividade.
Dos mesmos criadores de Nem Moscas, Nem Mosquitos – Fábio Oliveira Ferreira, Ilidio Leite e Tiago Henriques –, este sítio, doravante, assumirá, como propósito primeiro e único, a promoção de um projecto literário que, neste momento, se encontra ainda em fase de elaboração.
Foi precisamente com o título a encabeçar tal obra que este blog foi baptizado.
Os conteúdos a publicar resumir-se-ão a excertos do próprio livro, bem como a comunicações pontuais de informação relevante sobre o mesmo.
Dos visitantes da página, é esperada uma participação dinâmica, através de comentários aos posts editados, bem como pelo envio de críticas, opiniões e sugestões para os endereços de correio electrónico geral ou particulares de cada um dos autores.
A equipa responsável por Rega as flores que elas crescem fará o esforço necessário para que os objectivos enunciados sejam cabalmente cumpridos, tendo um desejo sincero de que o trabalho desenvolvido seja do agrado comum.